Nós, os do Makulusu (1967), de José Luandino Vieira



Penetramos no romance de Luandino Vieira com a atenção redobrada, cientes da dificuldade de leitura característica da obra do escritor angolano. E, ao terminar o primeiro bloco, surpreendentemente nos percebemos cheios de dúvidas. Quem é que está falando mesmo? Quantos anos ele tem? O que ele estava dizendo? Onde e quando a história se passa? 

Na análise que faz do livro em sua dissertação de mestrado, Luiz Maria Veiga adverte que "por mais experiente e habilitado que seja o leitor, a impressão que lhe ficará, na grande maioria dos casos, após a primeira leitura de Nós, os do Makulusu, é a de ter entendido muito pouco ou mesmo a de não ter entendido nada"[¹]. É apenas pelo acontecimento retomado a cada início de bloco, a morte do Maninho, que depreendemos um espaço-tempo orientador da leitura que nos convida a mergulhar nas memórias de um narrador sonâmbulo. 

    História escandalosamente pessoal, reveladora de aspectos sociais que reverberam na vida íntima do narrador, Nós, os do Makulusu é construído em torno de uma constante atmosfera de pesadelo. Essa voz que fala é egocêntrica, pouco comunicativa, como se falasse para si mesmo ou escrevesse em pleno estado de sonambulismo, por isso a dificuldade de leitura. A voz narrativa não dá ao leitor o que ele espera, não constrói uma linha organizadora do mundo ficcional, mas elabora seu diário a partir de fragmentos de memórias à primeira vista indistintos. 

    Nesse diário inacabado que recebe, ao final, orientações espaço-temporais idênticas ao momento de escrita do autor real – Tarafal, 16 a 23/04/1967 –, predomina certa adramaticidade que faz o leitor constantemente se esquecer dos acontecimentos já apresentados e ser incapaz de estabelecer com facilidade as relações de causa e efeito entre os fatos que já leu e está a ler. Particularmente, acreditamos que melhor aproveita a experiência de leitura, aquele que se deixa perambular pelo mundo dos sonhos assim como o narrador. Permitindo voltar à consciência os próprios momentos vividos, a partir das sugestões dadas pela memória do outro. 

Ao menos, foi deste modo que nos habituamos à dicção fragmentária da narrativa, à constante deformação estética da realidade, que começa já na deformação da estrutura sintática da língua portuguesa, e aceitamos o convite ao delírio de um Mais-Velho em estado febril, que divaga num movimento circular, num verdadeiro nevoeiro da subjetividade. 

Este livro é como um rolo de filme antes da edição, com as cenas dispostas de acordo com a ordem de filmagem. Ou como a montagem experimental da primeira escola russa de cinema, construída não pela lógica sequencial, mas pela lógica psicológica. Eisenstein dizia que a montagem é o único processo realmente original da arte cinematográfica, mesmo não sendo uma técnica exclusiva do cinema e sim uma ferramenta de todo tipo de arte, por ser um processo que faz parte da forma de funcionamento do cérebro humano, que reorganiza as memórias não cronologicamente, mas se valendo de analogias. É o que percebemos o tempo todo no texto de Luandino. "Cheiro de morte, cheiro de café, cheiro de rosas, rio para dentro, é que ele [Maninho] tem tantos cheiros em nossa vida"[²]. No trecho, as memórias sensoriais remetem à figura do irmão, coisas aparentemente distintas possuem o mesmo valor simbólico para Mais-Velho. 

O romance sem montagem não se constitui como o caso raro de Aleksándr Sokúrov em Arca russa, plano-sequência de 96 minutos; um filme sem montagem, como apontou a crítica, mas organizado pela linearidade de uma imagem não interrompida, contínua e constante. No livro, ficamos com sequências, ou até com breves cenas, aparentemente desorganizadas, desarticuladas entre si, representantes da liberdade do pensamento humano, difícil de apreender. O filme de Sokúrov parece não ter passado pelos processos de intervenção criativa do cineasta-compositor, por ser um filme sem nenhum corte, rodado numa única tomada. Mas também no Nós, os do Makulusu parece que falta essa mão criadora do autor implícito, justamente pelo contrário, pela fragmentação das cenas. Ninguém dá ordem ao caos das lembranças, elas escorrerem livremente pela pena.

Veiga (2010) é quem faz a montagem tradicional desse rolo de filme, seu trabalho complementa a experiência de leitura do romance, permitindo-nos adentrar aquele universo que achávamos perdido no fluxo de consciência do narrador sonâmbulo, o mundo diegético, fabular. É ele quem faz o exercício tradicional da escrita, dar ordem ao caos do pensamento. Exercício que, para alguns teóricos, é o fazer da própria arte. Herbert Read (1968) diz que "a arte é uma fuga do caos. É movimento ordenado em números; é massa encerrada em medida; é a indeterminação da matéria em busca do ritmo da vida"[³]. 

Refletindo sobre a autobiografia, Chiara (2001) percebe que nesse tipo de texto "a memória converte-se (por uma capacidade de reconstituição do passado) ao que podemos chamar de vigília da vida contra o sentimento de perda, de desolação diante do que já foi [...]. Evocamos o gesto do homem quando se debruça sobre o branco do papel para dar ordem ao caos de suas lembranças: confronto fatídico com a própria imagem no espaço especular do texto; um ajuste de contas com o destino por meio de uma tarefa de dar perenidade àquilo que o constitui como ser, antes que a morte venha para cumprir seu ritual de aniquilamento que torna tão irrisória nossa estada no mundo, que nos faz poeira de estrela, espectros"[4].

Nós, os do Makulusu não é uma biografia verídica, apesar de ter por base alguns acontecimentos da vida do autor, mas serve aos propósitos apontados por Chara. Mais-Velho também teme o aniquilamento da subjetividade pela morte. Todavia, não procura sobreviver por meio do resumo escrito de suas experiências pessoas e das marcas de seu tempo, e sim tenta expurgar de si os pesadelos. A perda dos demais rapazes do Makulusu (Maninho, Paizinho e Kibiaka) simboliza o desmantelamento do povo angolano durante a guerra de libertação. Resta recordar essa dor, fixar as lições, divulgar esse amadurecimento. E Luandino faz isso belamente. Seu narrador se desprende do modo de contar habitual da autobiografia, para dar expressão ao que há de mais dinâmico no pensamento humano, sua ilogicidade.



[¹] VEIGA, Luiz Maria. Retratos do colono, do colonizador, do cidadão: a representação literária da minoria branca em ‘Nós, os do Makulusu’ e em outras narrativas angolanas. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, 2010. p. 31-2. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8156/tde-26042010-141411/
[²] VIEIRA, José Luandino. Nós, os do Makulusu. São Paulo: Ática, 1991. p. 63.
[³] READ, Herbert. O significado da arte. Portugal: Ulisseia, 1968. p. 28. 
[4] CHIARA, Ana Cristina. Pedro Nava, um homem no limiar. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001. p. 37.

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