Entre filosofia e religião: acerca do Confucionismo


Filosofia ou religião? Parece que nenhum ocidental consegue fugir a essa pergunta ao se deparar com os ensinamentos confucionistas. Provavelmente por causa da nossa mania liceutica de catalogar tudo em gêneros e tipos. Sem procurar fugir a regra, vamos tentar entender o que leva alguns investigadores a optar por um ou por outro meio de transmissão de conhecimento e valores.

É possível dizer, em linhas gerais, que o confucionismo denomina um modo de ver o mundo que se popularizou no Oriente e acabou por ser grande marca da milenar postura de grande parte dos chineses, japoneses, coreanos, vietnamitas; e que vem alcançando, timidamente, uma proporção mundial. Doutrina difundida por séculos, nos lábios e dedos de muitos sábios importantes, tem seu início históricos na figura de Confúcio, nome latino do mestre chinês Kung Fu-Tse, que viveu a aproximadamente 500 a.C. 

Quando começou a escrever e ensinar, Confúcio já era um homem viajado, carismático por conta de sua bela aparência e conduta refinada. Ele passa a imagem do professor que incorpora suas lições, de forma a apresentar-se justa e convincentemente. Antes de colocar-se como grande pensador, à moda de Platão e Aristóteles, Confúcio assume que suas ideias vêm da sabedoria popular, a partir da qual organiza um pensamento lógico e coerente. Em suas belas lições de ética, critica a situação da sociedade decadente, mostrando que ela é contornável se houver um esforço de democratização do ensino, até então reservado aos nobres. 

Nesse ponto está um dos grandes valores sociais de suas obras. A educação em massa de seus preceitos prometia igualar um pouco o valor social das diferentes classes, todas seguindo as mesmas regras que expandem o respeito à família ao igual respeito aos membros das famílias alheias. A partir disso, que suas normas de conduta são ditadas, de forma a serem capazes de levar os homens ao equilíbrio das vontades da vida terrena e da vida espiritual, em outras palavras, da vida privada (individual) e vida pública (social/coletiva).

Uma espécie de doutrina comunitária, o confucionismo sustenta os valores culturais de uma vida em sociedade por meio do refinamento da conduta e da responsabilidade pessoal. Cabe a cada um seguir os valores de amor, justiça, cumprimento das regras políticas, autoconsciência da alma transcendente, sabedoria, sinceridade; porque eles aproximam o homem da razão e o distancia dos instintos primitivos e animalescos.

Esse predomínio da razão sobre a emoção, alma ligada ao transcendente, aproxima o seu pensamento aos de filósofos como Sócrates, e alcançam no Oriente proporções fenomenais frente à frágil divulgação da Filosofia grega entre as elites ocidentais. Esse apego à razão que coloca o indivíduo como “centro de todas as coisas” aproxima o confucionismo do que poderíamos classificar filosofia oriental, pautada na educação e na divulgação do saber intelectual e ético. Isso porque o velho mestre escreveu vários livros e estudou os clássicos da literatura oriental (aqui estamos empregando literatura no sentido latto do termo, como aquilo que diz respeito a toda produção escrita e não apenas aos textos ficcionais esteticamente admiráveis).

Por outro lado, o confucionismo também orienta algumas práticas menos transcendentais. Em meio aos valores de postura ética, entra o respeito à tradição e os ritos que a rememoram. Ensina-se rituais culturais cuja força de religião é bastante visível. Mantêm-se práticas como o culto dos ancestrais enquanto um dos deveres da dedicação filial, com posturas muito próximas às cultivadas pelas religiões africanas, como o oferecimento de produtos alimentícios aos túmulos dos mortos. Para além das práticas cotidianas, busca-se o caminho (Tao) para além do corpo desgastável e finito. 

São esses os elementos que levam pesquisadores a classificar o confucionismo como uma religião, com preceitos que vai para além da filosofia moral. Mais que um doutrinamento filosófico, para tais investigadores, estaríamos diante de um ensinamento religioso. Mas, ora, se a religião é o que liga o homem às divindades, como chamar religião o conjunto de ensinamentos e práticas que não articulam os conceitos de deus e de mundo divino?

É certo que o confucionismo prevê uma possibilidade de existência para além do invólucro carnal, mas não trabalha com o temor da punição. Não é o medo do castigo das divindades que move o confucionista, mas a lógica e a inclinação cívica que o fazem seguir em direção à pureza da alma e desenvolvimento da mente. Vale lembrar que o confucionismo é um dos responsáveis pela inversão do valor social do soltado e do sábio em grande parte do mundo feudal do Oriente. Enquanto o direito à propriedade e governo de terras na Europa pré-iluminista era concedido aos heróis de guerra (homens que demonstraram seu valor pela força de seus braços), em muitos lugares do Oriente esse direito era concedido aos estudiosos (segundo o valor demonstrado nos exames e provas de conhecimento).

Entendendo os riscos de incorreções aos quais nos submetemos ao tentar enxergar o mundo de lá pelo discurso dos homens de cá, optamos por assim seguir por crer que a tradução e interpretação intersemióticas sempre trazem novos caminhos de compreensão, de si e do outro. Filosofia ou religião, de qualquer forma estamos falando de classes que estão deslocadas de seu universo de origem e, por isso, são incapazes de descrever o objeto. De todo modo, a partir delas é possível esmiuçar as particularidades das ideias confucionistas, que acabam por refletir valores universais, próprios da vontade do homem de construir uma comunidade mais livre, fraterna e igualitária.